Após uma longa ditadura de 17 anos, sob o regime do general Augusto Pinochet, o Chile resgata o material e a memória dos anos de chumbo. Ela transparece em uma arca flutuante, localizada na central Avenida Matucana, Quinta Normal, em Santiago, que abriga o Museu da Memória e dos Direitos Humanos – a primeira das intervenções previstas no projeto, que terá, ainda, um complexo de escritórios. “No Museu estão depositadas as reminiscências da história chilena: a memória evidenciada, emergente, que flutua, suavemente elevada”, contam os arquitetos do escritório Estúdio América, autores do projeto, feito em parceria com Roberto Ibieta, responsável técnico e arquiteto associado no Chile.
A ‘arca museológica’, como é chamada pelos arquitetos, é representada por uma barra íntegra, única e sem concessões. A ausência deliberada de muros é uma característica significativa. Os fechamentos que organizam o espaço são todos de vidros serigrafados. Eles acomodam fotos que ilustram a dor, a angústia e o medo desencadeados entre o povo durante o período da ditadura. “Mas as fotos também cantam o valor, a fé e a organização que permitiram pôr fim ao terror”, pontuam os arquitetos.
O projeto de arquitetura aberta e flexível reflete o momento democrático do Chile e está apto a receber qualquer tipo de mostra. “Partimos de um país singular, entre a cordilheira e o mar. Com esses elementos geográficos, projetamos um museu pronto a ocupar esta franja, reverenciando, através de uma mirada simbólica, esses dois elementos marcados na alma do seu povo,” explicam os profissionais.
Organizado em torno de um jardim franqueado à praça, um volume absorve os usos comerciais e de serviços. Nele concentra-se a diversão inerente à natureza humana: comércio, bares e restaurantes. Conceitualmente, o edifício é formado pela Barra – prédio principal – e Base. Na primeira, elevada, estão reunidos o espaço museológico, as exposições, as informações e o viver da memória aberta nas duas extremidades, como quem deixa a vida passar.
Na base – área que complementa o programa usual de um Museu no subsolo – está o apoio dos setores administrativos formado por produção, estudos, invenção, seminários, conhecimentos da terra e do território. Neste espaço funcionam cinemas de arte e espaços para cursos sobre direitos humanos e a memória da cultura e do território chileno.
Nas duas laterais da barra, estão posicionados a circulação, os sanitários e os apoios, poeticamente iluminados. “A luz desce zenitalmente e penetra em toda a barra através de vidros laterais que dividem a circulação e a fazem, também, luz”, descrevem os arquitetos. Enquanto isso, no interior, está guardado o repertório de uma nação. As caixas de vidro transparentes transmitem vivacidade, através da memória vivida em fragmentos. Nesses espaços, a impressão deixada é de um atraente jogo de vazios que, admiravelmente, conserva a unidade do todo.
Os arquitetos explicam o programa de forma metafórica: “A manifestação, o florescimento deste conhecimento é objetivo contemporâneo de um museu. Ele surge através de raízes profundas e bem plantadas em um subsolo (a base), onde o potencial energético, produtivo, mineral e a solidez têm a oportunidade de se manifestar”.
O museu foi pensado para atender e receber os mais contemporâneos meios de eficiência e respeito ao meio ambiente. A energia do sol é captada na cobertura por placas fotovoltaicas. A luz natural ilumina o interior do espaço, desenhando efeitos inesperados. Os rasgos na cobertura da Barra iluminam até o seu interior.
Para proteção térmica, o edifício é revestido por uma pele de cobre que recobre as galerias laterais protegidas por duas camadas de vidro. A solução otimiza o condicionamento de ar e o isolamento acústico. Além de sustentável, o museu conecta-se ao espaço urbano com acessibilidade total, desde a rua, através de rampas e elevadores, integrando-se aos sistemas de transporte como a estação metroviária Quinta Normal e os sistemas de áreas livres da cidade.
A rápida execução de apenas um ano – realizada como uma montagem – caracteriza a estrutura metálica e as vedações do edifício. A estrutura da barra é única e evidencia a memória do país em seus 18 metros de largura por 80 de comprimento, com três pavimentos, ao cruzar todo o terreno transversalmente, no sentido leste-oeste.
Sua composição exibe treliças metálicas que formam um túnel e vencem todo o vão de 51 metros ininterruptos, o que preserva a praça pública logo a seus pés. Isso só acontece porque toda a carga é descarregada nos limites da construção, em quatro apoios.
Para os expectadores, a imagem externa que fica é a de uma caixa revestida de cobre que parece suspensa. Seu interior acomoda o programa e, por baixo, ela é vazada pelo caminho que transpõe a quadra. Dentro, três outras caixas translúcidas abrigam as áreas de exposição.
Os materiais empregados também remetem às lembranças do território chileno. Na barra, o chão recebe um mosaico coberto com vidro que retrata a memória dos lugares em nuances multicoloridas. Efeitos magnéticos de limalhas de cobre e ferro marcam o percurso dos visitantes e guardam uma efêmera memória das vontades, do ir e vir, nas direções dos olhares.
O revestimento externo evidencia o cobre e o carvão, protagonistas de uma parte da história do Chile: os mineradores e sua importância na economia. No Museu, a pedra de cristal tem no carvão o carbono essencial encontrado no ser humano e na constituição da natureza. “Simbolicamente, o carvão assume a representação e o registro do que já foi. A memória do que poderia ter sido”, explicam os autores.
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