Por trás da arquitetura e eficiência acústica monumentais da Sala São Paulo – existente há 15 anos – existe uma triste história de abandono, mas com final feliz. Antes Estação Júlio Prestes, a construção foi iniciada na década de 1920 e interrompida na década seguinte, permanecendo incompleta com o uso do edifício pela metade. Os usuários das linhas de trem dispunham apenas do concourse para uso coletivo, e os escritórios da companhia ferroviária abrigavam-se ao redor do grande pátio central. Enquanto isso, por 50 anos, a cobertura desse pátio – o Grande Hall central, um lugar de espera imponente para todos os públicos – nunca chegou a ser concluída.
“Essa ausência foi fundamental para sua metamorfose de estação ferroviária em sede da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) e de sua requalificação como Sala São Paulo”, conta Nelson Dupré, sócio da Dupré Arquitetura e responsável pela obra desde 1997. A alta complexidade técnica pediu a colaboração de uma equipe multidisciplinar numerosa e afinada. Nelson reforça: “Principalmente porque a reforma envolveu a transformação de um bem de valor histórico”.
A princípio, buscavam-se três objetivos. Era preciso definir as características da sala de concertos e de sua implantação no interior de um edifício existente. Era necessário pontuar os critérios de ação para recuperar a edificação, atendendo à preservação desse patrimônio histórico. E, por último, era necessário viabilizar as inumeráveis questões arquitetônicas, estruturais, materiais e técnicas imprescindíveis a uma sala de concertos atual, com todas as exigências ambiental e de isolamento acústico.
Segundo Nelson, a adequada qualidade acústica em uma sala de concertos deve responder, pelo menos, a duas preocupações distintas e complementares. “Externamente, a sala deve estar isolada do seu meio ambiente, funcionando como uma caixa estanque e impermeável a sons e vibrações vindos de fora. Internamente, deve prover adequada difusão, tanto dos sons diretos quanto dos refletidos em suas superfícies, sem que a demora entre som refletido e som direto configure uma percepção diferenciada (eco)”. Essas características devem ser usufruídas, em princípio, em qualquer ponto da sala, inclusive pelos instrumentistas, cantores e maestro.
Embora as proporções do antigo pátio da Estação Júlio Prestes fossem ideais para uma sala de concertos, executar o projeto original da cobertura, de autoria de Stockler das Neves, mostrava-se inviável e inadequado. Assim, o fechamento acústico da parte superior da sala foi integrado ao novo projeto arquitetônico e estrutural da Sala São Paulo por meio de uma cobertura curva e relativamente sobressalente, mas fiel ao perfil externo do projeto original.
A nova cobertura mais alta deveria conter um forro mais baixo e abrigar os sistemas de controle dos painéis do forro e de ar condicionado, tudo com completo isolamento acústico. “O problema era que se o novo forro fixo atendesse ao volume acústico indicado, sua posição e altura impediriam a vista para os magníficos vitrais superiores, localizados entre a sala de concertos e os dois halls laterais de acesso”, detalha Dupré.
Para garantir as visuais, foi adotado um forro móvel, cuja movimentação permite a modificar a geometria da sala, propiciando a variação volumétrica do seu interior, de maneira a adaptá-la a uma grande variedade de situações musicais, conforme andamento de partituras ou tempos de reverberação desejáveis. “A solução inovadora e audaciosa 'afina' a arquitetura da sala à situação de excelência necessária, de acordo com os diversos espetáculos, desde um solista, passando por um concerto de câmara, até grandes orquestras, bandas e corais”, comenta Nelson Dupré.
Internamente, deve prover adequada difusão, tanto dos sons diretos quanto dos refletidos em suas superfícies, sem que a demora entre som refletido e som direto configure uma percepção diferenciada (eco) Nelson DupréProjetados para operação em painéis independentes com total mobilidade e controlados por sistema computadorizado, os forros acústicos projetados são únicos em todo o mundo, distinguindo a Sala São Paulo nos meios especializados internacionais.
Seu perfeito funcionamento começa em cima do forro, onde há um espaço vazio variável, resultante do ajuste da volumetria da sala em função das necessidades acústicas de cada evento. Acima do vazio, o piso técnico possui lajes em estrutura metálica de aço com capeamento de concreto – steel deck. Elas detêm os mecanismos de controle do forro acústico e as instalações de várias utilidades ali dispostas, como ar condicionado, segurança de incêndio, movimentação de cortinas acústicas, elevadores de acesso ao forro e maquinário de controle dos painéis, dentre outros.
Paredes e forros de gesso isolam acusticamente os equipamentos, além de ajudarem a impedir a transmissão de sons externos para o interior da sala. Acima do piso técnico, uma cobertura isotérmica auxilia na proteção acústica e colabora no seu condicionamento ambiental.
Com uma forma original de paralelepípedo ou de ‘caixa de sapato’ e elementos arquitetônicos decorativos pré-existentes, a Sala São Paulo teve agregados novos materiais, densos e macios, como o compensado naval e as madeiras pau-marfim em portas, painéis, pisos, cadeiras e revestimentos dos balcões, e o freijó no palco. Tudo isso para potencializar a dispersão do som interno.
O consultor acústico brasileiro José Augusto Nepomuceno – colaborador no projeto executivo – justifica que desejava-se obter ‘presença’ acústica, por isso baniu-se os materiais altamente absorventes. A partir desse mote, o projeto arquitetônico trabalhou de forma harmoniosa com os requerimentos acústicos.
Exemplo disso é a solução adotada para o revestimento dos balcões e os módulos do forro. “Partimos de um conceito simples: se um ponto de emissão do som no palco for fixo, para se conseguir uma reflexão sonora multidirecional sempre diferenciada dentro da sala de concertos, basta que um mesmo elemento multifacetado – cuja forma, no limite, seja a de uma calota – repita-se sucessivamente nas faces de todas as novas superfícies”, explica Dupré.
A adoção desse conceito, na Sala São Paulo, deu origem a um desenho de painel aplicado repetidamente nas faces dos balcões e nas superfícies dos forros, cuja textura revela as sutis diferenças da sobreposição de planos e de espessuras dessas superfícies, necessária para a adequada dispersão dos sons.
No projeto das cadeiras, também buscou-se obter o equilíbrio entre as demandas da reflexão e da absorção acústica para otimizar a sala. A forma, o tecido e a espuma dos encostos e assentos e todas as superfícies expostas de madeira auxiliam nos tempos de reverberação e no controle de determinadas frequências.
A seriedade com que cada detalhe dos projetos foi tratado faz par, na visão do arquiteto, com a atenção aos custos, com a busca de equilíbrio e a adequada escolha dos materiais. O arquiteto Dupré adotou, na Sala São Paulo e nos demais espaços do Complexo Júlio Prestes, materiais de alta qualidade com, sempre que possível, sua repetição e padronização. Essa redundância reflete-se em economia e preservação ao longo dos anos.
A solução inovadora e audaciosa 'afina' a arquitetura da sala à situação de excelência necessária, de acordo com os diversos espetáculos, desde um solista, passando por um concerto de câmara, até grandes orquestras, bandas e corais Nelson DupréDentro da Sala, a paleta de cores é restrita: o azul profundo impregna a maioria dos detalhes em busca do distanciamento do infinito, enquanto a madeira clara sugere um dourado ausente, que compõe com o branco marmóreo dos estuques pré-existentes. Fora da Sala, as cores se aquecem no novo mezanino, mas o verde do metal e o havana da madeira apenas rebatem os tons esmaecidos e gastos dos pisos em pastilha dos halls: buscam sintonia, não contraste.
O edifício sede e estação da Estrada de Ferro Sorocabana – projetado por Stockler das Neves em 1925, na belle époque – teve sua construção iniciada em fevereiro de 1926 e tardiamente encerrada – mas não concluída – em outubro de 1938. A arquitetura baseia-se em simetria, unidade, equilíbrio e ritmo, regidos por estilos históricos e a escolha do “estilo Luiz XVI simplificado”.
Uma conciliação do ‘gosto francês ao conforto americano’, que combina valores arquitetônicos conservadores, técnicas construtivas contemporâneas, estruturas de concreto armado e aço. A nova estação referendava a tendência cultural conservadora da elite paulistana, não obstante seu empenho em promover renovação tecnológica e modernização da cidade.
Somente a partir dos anos 1980 – com o surgimento de vários exemplos mundiais de recuperação de patrimônios históricos e revitalização urbana – começa a recuperação do Centro de São Paulo e as intervenções que levaram à recuperação da Estação Júlio Prestes e à criação da Sala São Paulo, sede da Osesp. Até hoje, novas e necessárias adaptações continuam sendo realizadas, visando aumentar o conforto de músicos e público. Tudo orquestrado pelo arquiteto Nelson Dupré, autor do projeto de transformação da Estação Júlio Prestes em sala de concerto. E responsável pela integridade da concepção original e continuidade da mesma linguagem de materiais e detalhes.
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